A UTI, geralmente associada à morte, ganha novos conceitos no post do enfermeiro intensivista Marcos Schlinz
Olá, que bom tê-los aqui novamente conosco!
Em meu último post aqui no #BlogDoIESPe, conversamos sobre o que é uma UTI e sua importância no ambiente hospitalar, e abordamos também alguns pontos importantes, como seu cotidiano, destinação, cuidados intensivos, mitos e verdades.
Conforme eu havia prometido anteriormente, hoje vamos falar sobre a Unidade de Terapia Intensiva, mais especificamente sobre a vida, a terminalidade e a morte.
Uma das minhas principais intenções é desmitificar ao máximo o setor de UTI, pois muitas pessoas, inclusive profissionais de saúde, o veem como um ambiente frio, sombrio, tenebroso e destinado à morte. Gostaria de provocar questionamentos e reflexões que favoreçam o entendimento do seu cotidiano e seus objetivos, que vão desde a oferta de medidas que favorecem a Vida, que permitem o enfrentamento da Terminalidade, que já é certa em alguns casos e, que, ainda, auxiliem o evento da Morte de maneira mais humanizada, consciente e responsável. Tudo isso de forma que ela deixe de ser encarada como uma tragédia, por mais trágica que possa ter sido a causa primária, tanto para os familiares, quanto para os profissionais intensivistas, que também sentem, e muito, algumas “perdas”.
A UTI e a Vida
Bem, vamos conversar sobre a relação entre a UTI e a Vida, que para alguns são palavras controversas e, para outros, é a relação maior que se pode ter. Conforme conversamos no post anterior, a destinação principal de uma Unidade de Terapia Intensiva deveria ser o local da oferta do suporte avançado de vida para pacientes com condições de sobreviver. Partindo desse conceito, que inclusive é contemplado na RDC- 7 (Resolução da Diretoria Colegiada) da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), realmente o local onde se presta o serviço de cuidados intensivos, deve ser dotado de alta tecnologia e de recursos humanos especializados que trabalhem de forma proativa para promoção da vida, preservação, restabelecimento, da manutenção dela e minimização dos agravos. Porém, há que se respeitar a natureza e a finitude, que conversaremos nos tópicos de terminalidade e morte mais adiante.
Primeiramente, o que me remete à memória foi a experiência de trabalhar por cerca de cinco anos numa UTI-Neonatal do HRJP (Hospital Regional João Penido) da FHEMIG (Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais), muitas experiências que me serviram, e servem, de exemplo por toda minha vida pessoal e profissional.
Se não fosse a Unidade de Terapia Intensiva Neonatal e todas as suas grandes evoluções ao longo dos anos, muitos bebês que antigamente morriam por intercorrências no parto, problemas ou más formações congênitas e prematuridade extrema, por exemplo, não receberiam a “segunda chance” que recebem hoje, podendo ser “devolvidos” para seus pais e sociedade.
Por se falar em prematuridade, a taxa de sobrevivência entre os bebês com essa característica aumentou consideravelmente; além dessa boa notícia, é possível observar que estas crianças apresentam poucas, ou nenhuma sequela..Bebês com cerca de seis meses de gestação, prematuros extremos com menos de 400 gramas ao nascimento, atualmente se apresentam como milagres da medicina e da natureza. Vale ressaltar: grandes procedimentos intra-útero ou logo no nascimento, como, por exemplo, cirurgias cardiológicas e neurológicas que acontecem de maneira mais precoce possível em bebês em situação altamente grave e complexa, evitando, portanto, eventuais sequelas ou agravos, são grandes conquistas que se dão principalmente por dois motivos: o avanço das cirurgias pediátricas e a existência da UTI-Neonatal, sem a qual seria impossível o sucesso de tais procedimentos.
Valendo da possibilidade da Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica, a vida ganha também novas oportunidades para crianças que são surpreendidas por diversas doenças comuns e outras mais raras, sem esquecer daquelas, vítimas de acidentes, como traumas e queimaduras, por exemplo, que têm na UTI-Pediátrica a chance de estabilização, intervenções e suporte de vida, podendo retomar o estado de saúde, sempre o mais esperado, principalmente tratando-se dos pequenos e pequenas.
Uma coisa interessante: na UTI-Pediátrica, os pais muitas vezes são incluídos nos cuidados intensivos, que são fundamentais para o processo de facilitação da “cura”, bem como para a aceitação de uma nova e inesperada condição de vida pós-doença, com inúmeras limitações que, talvez, sejam inevitáveis; mas não se trata, em sua maioria, de fatos tristes, e sim, muitas vezes, o início e fortalecimento de lindas histórias de superação e de amor.
Falando especificamente do indivíduo adulto, diversos pacientes com algum problema grave e agudo, de aparecimento súbito, porém reversível, por exemplo, que antigamente teriam poucas chances de sobreviver, hoje são atendidos, e com excelência, nas UTIs, obtendo-se grandes resultados clínicos. Um exemplo clássico é aquele paciente diabético ou cardiopata que apresenta alguma instabilidade importante, que chamamos comumente de descompensação. Caso não sejam implementadas medidas de suporte avançado de vida e monitorização contínua, ou perdemos esses pacientes ou eles apresentarão sequelas sérias.
A Terapia Intensiva na atualidade apresenta algumas especificidades de atendimentos, como, por exemplo, os pacientes cardiológicos que recebem os cuidados intensivos nas Unidades Coronarianas ou Cardiológicas. Este ambiente em especial, detém recursos humanos e logística apropriada ao atendimento das pessoas com problemas cardíacos diversos e nas 24 horas, permitindo assim que as terapêuticas e protocolos adotados sejam o mais assertivos possíveis e que resultem em desfechos clínicos favoráveis. Outro exemplo de Terapia Intensiva de Adultos com grandes êxitos na atualidade são as UTIs onde trabalham Neurologistas ou Neurocirurgiões e pessoal altamente treinado em pacientes Neurocríticos, essas UTIs são chamadas de Neurológicas. Sendo a internação da população acometida nesta Unidade em especial, o fato que trará grandes possibilidades de retorno à saúde, minimização de agravos ou sequelas e levará, consequentemente, à vida.
A UTI e a Terminalidade
Na Unidade de Terapia Intensiva, a terminalidade faz parte do nosso cotidiano, pois muitos pacientes acabam passando a maior parte dessa fase conosco. Esse fato contradiz, inclusive, a finalidade na qual a UTI foi criada, pois todos os investimentos tecnológicos e terapêuticos avançados deveriam ser implementados em pacientes elegíveis à vida, ou seja, pacientes que tenham chances reais de sobrevivência.
Falando assim, é muito assustador, mas são vários os sentimentos e pontos de vista que convivem com as famílias e profissionais intensivistas.
Na minha vivência profissional, há mais de 10 anos em Terapia Intensiva, posso fazer um balanço generalizado acerca de nossas observações, nada de cunho científico e sem qualquer pretensão de estabelecer alguma verdade acerca disso. No posicionamento dos familiares e pacientes, algumas apresentações são controversas, pois enquanto alguns optam pela UTI a todo custo, não importando se essa medida irá apenas “prolongar” a vida, mesmo sem qualquer perspectiva de melhora, outros já lamentam de ver o seu familiar distante, longe, cheio de regras e restrições para visitá-lo, bem como alguns pacientes, mesmo em sã consciência, sentem-se abandonados pelos seus entes queridos.
Ainda nesse contexto, é possível observar algumas pessoas que não aceitam de forma alguma a condição irremediável da doença e tendem a buscar tudo e todos na esperança de um “milagre”; e ninguém pode privar a pessoa desses sentimentos, pois muitas vezes é esta “esperança” que lhe dá forças para o enfrentamento da terminalidade, bem como na elaboração do luto, que é necessário e importantíssimo que aconteça. Mas cada um tem seu tempo e sua forma de aceitação, fato esse que precisa da sensibilidade dos profissionais intensivistas, dos familiares mais conscientes, em apoio e facilitação da aceitação do fim que se aproxima. Sob a ótica profissional, observamos alguns profissionais com muita dificuldade em prestar cuidados a pacientes terminais, pois essa questão envolve sentimentos e preconceitos que abrangem essa etapa final na UTI.
Certa vez, tive um colaborador que estava muito contrariado em cuidar de uma senhora com câncer e em fase terminal, isso acabou gerando um desconforto e até julgamentos dos demais colegas do nosso plantão. Quando tivemos oportunidade de conversar, fiquei muito comovido, mas não surpreso, com a rejeição dele em prestar aqueles cuidados, pois há menos de dois meses ele havia perdido uma tia-mãe pela mesma doença da paciente. A diferença foi que outros familiares fizeram questão de colocá-la numa UTI na busca de medidas “heroicas”, mas que foram ineficazes, pois a mulher não resistiu e, 48 horas após a internação, acabou falecendo. Esse nosso colaborador não teve oportunidade de cuidar dela, de se acertar, de dizer que a amava e agradecê-la por tudo que fizera. O questionamento e a angústia dele era o fato de cuidar de tantas pessoas desconhecidas, mas não o deixarem cuidar da sua tia-mãe.
Fatos como esses nos remetem à reflexões, que vão desde o pré-julgamento equivocado de alguns, até à necessidade de permitir o processo de luto. Me pergunto: será que levar para UTI a todo custo é sempre o mais indicado? Qual o papel do profissional de saúde que recomenda a internação numa UTI? É possível humanizar a terminalidade dentro ou fora deste setor? A notícia sobre um quadro terminal deve ser dada o mais precoce possível ou em “gotas homeopáticas”? Como estamos com a questão da eutanásia e suas vertentes?
Vamos lá: em países mais desenvolvidos, é prática comum a contraindicação de internar paciente terminal em Unidades de Terapia Intensiva, em vez disso, estabelecem terapêuticas que, principalmente, mantém o suporte básico de vida, com ênfase maior em alívio do sofrimento, angústia e dor do doente. Medidas farmacológicas e outras terapias alternativas, como cuidados paliativos, ajudam muito na manutenção da qualidade e conforto na terminalidade. Essa prática já está ficando mais comum em nosso meio, através de uma mudança na cultura e preparação das Instituições Hospitalares e consciência da população e equipe de saúde.
Percebe-se a tendência da “desospitalização” de pacientes crônicos e terminais, fato esse que, além de reduzir custos altíssimos com as internações e suas potenciais complicações, confere um novo status aos familiares, que passam a ser cuidadores. O crescimento de home care (cuidados domiciliares) só aumenta e melhora a cada dia em nosso país, de forma que percebemos uma logística e um preparo profissional cada vez mais adequado, com segurança, monitorização e acompanhamento muito interessantes, evitando muitos agravos e reinternações desnecessárias.
Vale apontar que, antigamente, apenas o Estado tinha essa preocupação, através das políticas públicas e investimentos pesados em Atenção Primária à Saúde, e que ,hoje, quase a totalidade das operadoras privadas assumiram essa postura que, além de auxiliar na redução demasiada de custos e complicações hospitalares, contribui na promoção de uma morte digna, minimizando o sofrimento e colocando o paciente próximo dos entes queridos.
A UTI e a Morte
Muitas pessoas têm a palavra morte relacionada à UTI e vice-versa. Olhando os índices de mortalidade dentro de um hospital, observa-se mesmo um grande número de óbitos na UTI, fato este comum e “esperado”, pois é o local em que a maioria das pessoas internadas está numa condição de extrema gravidade ou potencialmente grave, sendo o maior motivo para que esse índice seja elevado. Mas algumas pessoas não se atentam aos êxitos da UTI, como quantas altas temos diariamente, número muito maior do que o de óbitos. Ainda bem, não é?
Comumente, enquanto enfermeiro em UTI, uma de minhas atribuições é de notificar os familiares ou responsáveis sobre a morte de seu ente, tarefa esta que não é fácil e até questionada por muitos de nós. Se não constato o óbito, porque tenho que avisar à família? Quem seria o profissional mais indicado para tal? Existe alguma maneira de tornar esta tarefa mais suave e menos dolorosa para quem está do outro lado? Qual a melhor maneira de comunicar o óbito: presencial ou por telefone? Infelizmente não tenho essas respostas, mas geralmente tentamos abrandar um pouco a tão temerosa notícia. Seguem algumas dicas que podem servir de ajuda, pois comigo geralmente o resultado é bom:
=> Preferencialmente, a notícia deve ser dada de forma presencial e nunca quando você estiver sozinho, mas sim em companhia do médico e outro familiar (se possível, também a presença do serviço de psicologia);
=> Existe também aquela estratégia de convidar algum responsável à UTI para conversarem caráter de urgência, pois, na verdade, vamos notificar o óbito. Nesses casos, opto por dizer que o quadro do paciente agravou-se muito e a presença é muito importante, devendo ser o mais breve possível, além disso, peço ao familiar que não venha sozinho à Unidade; essa notícia de urgência e agravamento, por si só já ajuda a pessoa a refletir sobre a possibilidade do óbito e da perda, auxiliando no processo de amadurecimento do luto;
=> Notícias ao telefone requerem cautela, principalmente quando são dadas à pessoa de muita ou pouca idade, pois podem ser um trauma com consequências desastrosas. Preferencialmente, na hora da admissão do paciente ou nas visitas da UTI, é importante que sejam eleitos familiares ou responsáveis que seriam o elo com a Terapia Intensiva, pessoa(s) essa(s) com telefone atualizado e que teriam “certa” condição de ser o mediador para notícias do CTI que podem ir desde à alta ou procedimentos e intervenções importantes, até ao evento da morte.
=> Ao notificar pelo telefone, procuro estar totalmente focado na veiculação dessa notícia, atentando-me para apresentar-me o mais educado e tranquilo, até um pouco pesaroso, mas sem ser fúnebre, porém, solidário; fazer com que entendam que o óbito ocorreu e das providências a serem tomadas.
Todas as pessoas sabem que a a vida é um ciclo, onde no final existe a morte, mas tomar essa consciência não é fácil, sendo um fator individual. A UTI não foi criada para a morte, não é o local destinado ao morrer, e sim para a vida, mas nem sempre, mesmo com todos os investimentos necessários para a manutenção e promoção da vida, o desfecho é favorável. O fato de constatar-se um óbito pelos profissionais de UTI não deveria ser considerada uma “perda”, pois se há uma gravidade instalada, consequentemente, é um dos resultados possíveis, mesmo que não desejados. Ainda é bastante comum que os intensivistas “sofram com o sofrimento” dos pacientes, pois com a convivência cotidiana é inevitável o desenvolvimento de afetividade e a observação da deterioração irremediável desses indivíduos acaba deflagrando o evento do óbito como um conforto aos próprios intensivistas, não que desejem a morte, mas que levam a reflexões muito comuns, como por exemplo: “coitado, descansou, parou de sofrer…”.
Por mais cuidadores que somos, precisamos também reconhecer os nossos limites, bem como a ordem da Natureza, que sempre será soberana e definirá o resultado, que poderá ser o final de uma história ou apenas um adiamento, pois o fim é inevitável a todos nós. Acredito que fazendo a cada dia o melhor para seu paciente em cuidados intensivos, tratando-o com integralidade e equidade, você está respeitando o ser humano de forma completa e, principalmente, sendo um grande agente que promove a dignidade.
Bem, pessoal, nosso post sobre UTI: vida, terminalidade e morte termina aqui, mas o assunto é extenso e requer cada vez mais reflexões para que tornem a prática em terapia intensiva para os profissionais e as experiências dos familiares o mais positiva possível. Espero que tenha sido válida a leitura e que tenham gostado da abordagem.
Em breve, conversaremos aqui no Blog sobre morte encefálica e manutenção do potencial doador de órgãos dentro da UTI; tema esse muito interessante , vivência que também faz parte de nosso cotidiano em terapia intensiva e que poderá, quem sabe, vir a auxiliar profissionais intensivistas e familiares para esse momento repleto de sentimentos positivos, negativos, de repúdio e de gratidão, enfim, quebrar alguns mitos e paradigmas. Que possa também elucidar algumas verdades e, principalmente, instigar a necessidade de questionamentos sobre uma questão tão complexa que pode se configurar num desfecho dessa nobre causa, dentro de todos os preceitos éticos nela envolvidos.
Compartilhe com seus amigos, familiares e não se esqueça de comentar aqui abaixo se tiver alguma dúvida críticas e sugestões, ok?
Um grande abraço e até a próxima.