Na segunda parte do post sobre Prescrição de Exercício e Câncer, Raphael Soares fala sobre alguns efeitos do câncer e dá dicas de como minimizá-los através da atividade física
Olá, como vai?
Estamos dando sequência ao nosso post sobre prescrição de exercício e câncer aqui no Blog do IESPE.
Na primeira publicação sobre o assunto, nós falamos sobre esta patologia, que segue como uma das maiores causas de mortes no Brasil e no mundo: o conceito, alguns fatores de risco e quais os tipos de câncer, apresentamos dados epidemiológicos e começamos a falar do paciente com câncer. Se você quiser ler o post Prescrição de Exercício e Câncer – Parte 1 na íntegra clique aqui.
Nesse post vamos falar as consequências para a saúde do paciente com câncer, os resultados nocivos para o aparelho locomotor (principalmente nos músculos), a aplicabilidade dos exercícios em cada fase do tratamento, a prescrição do treino de acordo, além de dicas de como minimizar alguns efeitos da doença em nosso cliente/paciente.
Fadiga no paciente com câncer
A fadiga relacionada ao câncer é uma sensação subjetiva de cansaço persistente associada ao tratamento da doença, que não é proporcional à atividade recente e que interfere no funcionamento normal do corpo.
Essa fadiga é multifatorial, sendo assim, temos que levar em consideração qual o grau de evolução da doença, qual órgão ou região do corpo o câncer está se desenvolvendo, o estado emocional do paciente, dores, efeitos colaterais dos tratamentos medicamentosos, entre outros.
É normal vermos uma diminuição repentina na quantidade de atividade física praticadas pelos doentes, pois esses fatores citados acima os desencorajam a praticar exercícios, o que é muito ruim para eles, já que observamos um ciclo vicioso entre esses fatores e o inatividade ou sedentarismo. Por exemplo, quanto mais o paciente sente dor, menos ele se mexe, o que é compreensivo, mas tendo conhecimento funcional e fisiopatológico, como profissional capacitado, sei que em determinados casos, quando o paciente volta a fazer exercícios, temos uma diminuição das dores, o que reflete diretamente no humor, na mobilidade, autoestima, e etc., ou seja, trás um benefício enorme ao tratamento e ajuda a manter uma boa qualidade de vida durante a evolução do tratamento da doença.
Fraqueza muscular
Seja qual for o contexto clínico, a inatividade prolongada leva à perda de massa muscular (já falamos um pouco sobre isso no post O Músculo e Suas Estruturas, clique aqui para ler.
Em pessoas saudáveis, podemos observar uma perda a partir de uma semana de imobilização e até 20% de diminuição do volume da musculatura. Juntamente com essa perda de massa muscular, uma consequente diminuição da força.
Em indivíduos comuns, o esquema ao lado nos mostra como mantemos em equilíbrio e manutenção da nossa musculatura. A síntese proteica é responsável pela manutenção das funções de nossas células e pelo aumento do volume da musculatura que é resultado do anabolismo. A taxa de proteólise (quebra de proteína) mantem-se em equilíbrio com a taxa de anabolismo.
Em pacientes com câncer, podemos observar uma diminuição de até 80% da massa muscular, causada por diversos fatores.
Fatores que interferem na perda de massa muscular:
- Idade dos pacientes – quanto mais idoso, maior é a perda muscular causada pela sarcopenia, ligada ao envelhecimento;
- Infecções e processos inflamatórios sistêmicos – quanto maior o processo inflamatório, maior será a perda de massa muscular;
- Anorexia – síndrome da anorexia-caquexia (SAC) é uma complicação frequente no paciente portador de uma neoplasia maligna em estado avançado. Caracteriza-se por um intenso consumo dos tecidos muscular e adiposo, com consequente perda involuntária de peso, além de anemia, astenia, balanço nitrogenado negativo, devido alterações fisiológicas, metabólicas e imunológicas;
- Tratamento medicamentoso – corticóide e quimioterapia são extremamente deletérios à musculatura;
- Fraqueza muscular – produto de todos os outros fatores que causam perda muscular e que em muitos casos é agravada pela inatividade do paciente.
Exercício físico e reentrenamento
O exercício pode, e deve, estar presente na prevenção e no tratamento do câncer. Penso que não resta dúvidas sobre as possibilidades de ajudar na prevenção, não há muito o que ponderamos, pois a literatura científica vem falando sobre isso há um bom tempo.
Courneya et al. publicaram e 2001 um estudo que apresenta a utilização do exercício físico durante toda a evolução da doença que podemos ver na figura abaixo:
Mas e aí, o que acontece durante o tratamento?
Pois bem, vamos dividir em dois momentos: O primeiro, onde o indivíduo já está doente, mas ainda não iniciou o tratamento médico que vamos chamar de pré-tratamento e, o segundo, quando ele está de fato participando de diversas terapias para combater o avanço da doença e a busca da cura que chamaremos de tratamento.
Pré-tratamento
Durante esse período, podemos utilizar o treinamento para ajudar o paciente a se preparar para a terapia. Normalmente ele acontece num estágio menos avançado da doença, como, por exemplo, a partir do momento que descobre a patologia, mas o paciente ainda não desenvolveu todos os sintomas.
Temos que pensar em alguns pontos:
- Aumentar a capacidade física (força / endurance) – ao melhorar essas qualidades físicas os indivíduos conseguem guardar sua forma física por mais tempo e, principalmente, sua autonomia;
- Preparação ao tratamento – o tratamento do câncer pode conter muitos fatores causadores de efeitos colaterais, como, por exemplo, a perda de musculatura causada pelos remédios. Se conseguirmos fazer com que o paciente inicie o tratamento numa melhor forma física, essa perda será mais lenta, consequentemente, conseguimos guardar mais autonomia e mais força;
- Testes físicos – os testes físicos nos dão valores de comparação para saber com o paciente está evoluindo e principalmente durante o tratamento;
- Impacto psicológico – o exercício pode ajudar na manutenção em níveis mais baixos de estresse e de depressão, minimizando o impacto da doença.
Tratamento
Até aqui conseguimos ver uma gama de coisas que acontecem com o indivíduo durante a evolução da doença e, pensando em tudo isso, podemos trabalhar o exercício físico para promover os seguintes pontos:
- Lutar contra os efeitos secundários do tratamento – um exemplo que temos falado bastante nesse post é a busca na manutenção da massa muscular dos pacientes e fica claro que sem o exercício criamos um círculo vicioso entre sintomas e o sedentarismo; vale lembrar que o exercício físico tem um papel fundamental na manutenção do sistema imunológico, sendo assim, se bem trabalhado, o exercício pode ajudar por exemplo no surgimento de doenças secundárias como a gripe, devido a baixa sofrida pelo organismo no sistema de proteção do corpo;
- Manter o melhor nível de atividade possível – é muito importante manter os níveis de exercícios num nível ótimo e respeitando cada fase do tratamento;
- Melhora da qualidade de vida (independência) – o exercício ajuda a manter a autonomia do doente. Quando eu falo de autonomia, me refiro não somente à parte motora, como, por exemplo, tomar banho, trocar a roupa e outros mas também em aspectos cognitivos que podem aparecer durante o tratamento.
Todos esses fatores são resultados das adaptações diretas e indiretas causadas pelo exercício.
Prescrição do exercício
De acordo com o American College of Sport Medicine (ACSM), o exercício pode ser prescrito através de diferentes estratégias, desde a detecção, tratamento e cura do paciente.
Entre eles podemos dar destaques às seguintes possibilidades:
- Eletroestimulação – quando o paciente não apresenta a possibilidade de executar movimentos, podemos utilizar a eletroestimulação para provocar o trabalho muscular, estimulando o aumento da síntese proteica e desacelerando o processo de perda de massa muscular, bem como auxiliar na recuperação da massa perdida durante o tratamento;
- Treinamento contra resistência – a musculação tem papel fundamental durante o tratamento, não só para manter e recuperar a massa muscular e, consequentemente, a força, mas auxilia na manutenção da imunidade do paciente e em alguns casos a diminuição das dores;
- Exercícios funcionais – devemos prescrever os exercícios analisando diretamente a vida cotidiana dos pacientes para garantir um melhor nível de autonomia;
- Esporte – podemos utilizar esportes de baixo impacto que garantam não somente adaptações benéficas ao organismo, mas também cumpram o papel social de trazer o paciente para ter contato com a sociedade;
- Reentrenamento cardiovascular – durante o tratamento há uma perda da capacidade não só cardíaca, mas também pulmonar, e os exercícios ajudam diretamente na melhora de ambos os dois sistemas.
Treino de musculação
Antes de iniciar o treino é preciso avaliar o nível de força do paciente, pois todo o controle de carga é feito em cima do valor achada no teste de 1RM, e esse valor deve ser ajustado sempre que necessário para garantir as adaptações necessárias.
O ACSM indica o seguinte modelo para prescrição de exercícios contra resistência para pacientes com câncer:
- Iniciar com 3 séries à 12RM durante 2 semanas;
- Após – 3 séries à 10RM durante 2 semanas;
- Após – 3 séries à 8RM durante 3 semanas;
- Após – 3 séries à 6RM durante 6 semanas;
- Os treinos devem ser repetidos 3 vezes por semana;
- 3 exercícios de membros superiores e inferiores.
Treino funcional
O trabalho focado na funcionalidade do indivíduo deve levar em consideração a autonomia na vida cotidiana, ou seja, todos os exercícios devem se aproximar ao máximo dos gestões motores que o indivíduo executa durante o dia, como, por exemplo, levantar e sentar numa cadeira ou na cama.
- Marcha / escada – devemos fazer o paciente andar e, se possível, subir e descer escadas, porém quando isso não é possível, podemos desmembrar esses gestos motores e trabalhar separadamente cada fase do movimento até conseguir juntar tudo e garantir a execução do exercício por completo;
- Transferências – o simples gesto de trocar de posição numa cama ou em alguns casos sair de uma cadeira de rodas para uma cama deve ser trabalhado para melhorar as qualidades motoras e a força do paciente, possibilitando com que ele consiga fazer da melhor forma possível sem correr risco de queda, por exemplo, não estando dependente de uma ajuda externa.
Todo o treinamento funcional pode ser executado através de exercícios, mas não se esqueça, todas as adaptações são específicas, ou seja, para a carga, o gesto, a velocidade e o angulo de execução do exercício, sendo assim, faça uma análise bem completa do que o paciente realmente está precisando e seja criativo em buscar formas para garantir essas adaptações.
Esporte
O esporte é uma ótima possibilidade de trabalharmos com os pacientes de forma eficaz e lúdica.
Se houver possibilidade, dê preferência a esportes praticados em grupo. A dinâmica de grupo é muito importante para sociabilização do paciente, otimizando os resultados do combate ao estresse e à depressão, auxiliando também no aumento da confiança em si mesmo e nas pessoas que estão ao redor durante o período do tratamento.
Reentrenamento cardiovascular
Para o controle do exercício aeróbio é muito interessante que o paciente passe por um teste de VO2max; dessa forma obtém-se todos os valores necessários para os cálculos das intensidades durante as fases do treinamento. Mas caso não haja a possibilidade, podemos utilizar aquela velha formula conhecida por todos nós para estimar a frequência cardíaca máxima (FCmax = (220 – idade) – 10%).
O ACSM indica o seguinte modelo para prescrição do treino aeróbio para pacientes com câncer:
- Iniciar com frequência de repouso (Fcrep) + 50% à 60% de 1 à 3 semanas;
- Evoluir para Fcrep + 70% à 80%;
- 3 à 5 vezes por semana;
- A duração do treino é em função do paciente, ou seja, é determinado por ele e de acordo com a condição diária;
- Podemos trabalhar de forma contínua ou em interval training;
- O controle da intensidade deve ser feito através da escala de Borg (6-7).
Contra indicações
- Estado físico muito alterado;
- Impossibilidade total de movimentar-se;
- Infecções / febre;
- Anemia;
- Trombose;
- Caquexia severa (35% pré-treinamento);
- Distúrbios de função cardíaca;
- Descompensações / deficiência respiratórias.
Então, pessoal, chegamos ao final de mais um post. Dessa vez, falamos sobre a prescrição do exercício e o câncer. Um tema que, aos poucos, vem conquistando a atenção de muitos profissionais de educação física, tanto na pesquisa, quanto no mercado. Espero que eu tenha contribuído para somar aos seus conhecimentos prévios sobre o assunto.
Ficou alguma dúvida? Tem algo que não entendeu? Gostou? Então deixe seu comentário aqui embaixo pois terei o maior prazer em responde-lo.
Um grande abraço e até a próxima.
Escrito por:
2 comentários em “Prescrição de exercício e câncer – parte 2”
Im grateful for the post. Fantastic. Brei
Os comentários estão encerrado.