Arquiteto Jorge Astorga presenciou a tragédia e destacou a importância da prevenção
Neste último domingo (2), para o espanto de todos os brasileiros, o Museu Nacional foi destruído por um incêndio de grandes proporções, consumindo seus mais de 20 milhões de itens históricos e científicos. A edificação inaugurada por D. João VI e antiga sede da família real sofria há anos com poucos recursos, baixo orçamento, deterioração das paredes, da estrutura interna e do sistema elétrico.
Embora o impacto da tragédia seja sentido em diferentes instâncias, é dos historiadores, arqueólogos e arquitetos a voz mais intensa sobre a gravidade do ocorrido. “Não se trata apenas de ‘mais um museu’, mas sim da história da humanidade, da história de um país. Quantas gerações futuras não terão oportunidade de aprender com o conhecimento do passado?“, comentou Aline Gouvêa, arquiteta e supervisora de ensino da pós-graduação em Restauro, Conservação e Intervenções em Bens Culturais Edificados no IESPE.
Profissionais como Aline garantem que o incêndio no Museu Nacional é o ápice de um problema recorrente no país, mas também já se movimentam para propor soluções e modificar a realidade, antes que mais um tesouro nacional seja perdido. Thaís Filgueiras Falabella é coordenadora do curso e destacou que o caso deve servir de norte para uma nova inciativa pública focada na conservação de patrimônios. “Só o conhecimento do passado pode nos levar à construção de um futuro melhor. Precisamos incessantemente denunciar o abandono no qual se encontra o patrimônio cultural brasileiro e despertar nosso povo, sob pena de sermos nós mesmos os próximos a queimar”.
O futuro do patrimônio e o novo Museu Nacional
Direcionar o debate para a solução dos problemas de patrimônio é exatamente a visão de Jorge Astorga, um dos fundadores do CICOP Brasil (Centro Internacional para a Conservação do Patrimônio Brasileiro) e professor da pós-graduação. O arquiteto, que atua na área, é também membro do Grupo de pesquisa em Conservação Preventiva de Sítios e Edifícios Históricos da FCRB e pesquisador de Técnicas de modelagem digital aplicadas ao Patrimônio Arquitetônico – PROARQ. Em entrevista ao IESPE, ele comentou o caso e as implicações para a Arquitetura, apontando o futuro da preservação e restauração da memória no país.
Como foi presenciar o incêndio?
“Eu voltava de São Paulo de ônibus e quando ele passava por uma rua principal da cidade, começamos a ver o incêndio. Avançando um pouco mais comecei a perceber uma fachada com uma sombra horrorosa e vermelha de fogo. Logo que vi mais de perto não tive dúvidas que era o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista em São Cristóvão.
Foi uma sensação horrorosa e uma grande tragédia ver aquilo de perto, aquele fogo intenso e muito rápido consumindo o museu. Ainda mais sabendo como arquiteto e técnico na área que era um prédio frágil, com uma estrutura de madeira e acervo inflamável que dificulta combater rapidamente o fogo. Mas não pensei só como arquiteto, mas como pessoa, pois estive lá com meus pais, meus filhos e alunos e nós brasileiros fazemos questão de levar turistas no museu. É a nossa história e a história da nossa civilização”.
Como deve ser a prevenção de acidentes em patrimônios como esse?
“O que sentimos falta (e é a realidade brasileira e da América Latina como um todo) é o cuidado e a conservação constantes. Precisamos ficar mais atentos e fazer uma manutenção melhor. Se uma ala estiver com problemas, fazer os devidos reparos. Uma boa conservação preventiva minimiza riscos, evita muitos danos e reduz muito as chances de um possível sinistro. É preciso inspecionar regularmente, verificar as instalações elétricas, conferir se os extintores e o sistema de incêndio estão funcionando e se tem água nos hidrantes ao redor.
Outro detalhe importante que tem sido muito discutido e que quero abordar no curso de pós-graduação é a reprodução digital das peças. É possível muitas vezes escanear a obra e fazer uma réplica fiel em material sintético. Mas é preciso ter muito cuidado, pois as pessoas querem ver, sentir e tocar a obra original e há um desconforto quando é uma cópia, por mais que seja por motivos de segurança.
Preventivamente seria bom escanear os objetos para a eventualidade de um sinistro. Mas é claro que o ideal é tentar evitar que ele ocorra”.
Qual é o procedimento de restauração de um patrimônio?
“Parece simples, mas não é. Em prédios como esse o projeto precisa ser aprovado em todos os órgãos (são fiscalizados pelo Patrimônio Federal, Estadual ou Municipal e pelos próprios órgãos de museus, como o IBRAM) e é um processo complexo e demorado. Eles são analisados em relação à estrutura e acervo e, após aprovação e captação de recursos, é iniciado um projeto de restauração, requalificação e/ou adaptação.
Esse processo acontece aos poucos porque as normas técnicas vão sendo revisadas, atualizadas e são cada vez mais exigentes. Uma legislação obrigatória, por exemplo, é aquela que exige a acessibilidade dos prédios preservados (com rampas, elevadores, nova programação visual e identificações). Também existem as normas de combate ao incêndio que determinam novas instalações elétricas e novos materiais. Tudo o que representa um risco é questionado e diagnosticado nesses projetos para propor as soluções mais adequadas possíveis dentro das normas atuais.
Por vezes é preciso substituir todo um sistema elétrico ou a parte hidráulica e de incêndio, o que altera completamente a configuração daquele espaço. Por isso que na especialização os arquitetos estudam a melhor maneira de inserir as novas tecnologias em prédios históricos”.
O que fazer agora que a tragédia já aconteceu?
“Quando estamos em uma situação como essa de crise e ocorre o sinistro, é preciso primeiramente ser humilde e contar com o apoio de todos. Mas no segundo momento é preciso pensar o “novo museu”. Temos que ser solidários e nos disponibilizar para o que necessitem.
O novo museu tem que partir do restauro da consolidação do edifício histórico, suas fachadas e as escadarias, e o que não for possível recuperar, reintegrar com uma nova estrutura de pisos, de forro e de coberturas. No sentido dos acervos cabe aos profissionais responsáveis pela área, mas talvez seja interessante ter algo reproduzido digitalmente.
Seria uma opção interessante que essa parte educacional e de pesquisa, com os laboratórios e também os acervos, fosse para um prédio anexo com uma boa arquitetura condizente com o museu e o mais próximo possível da estrutura. E como ele será feito do zero, será possível construí-lo totalmente dentro das normas, garantindo as condições certas para itens inflamáveis e frágeis, por exemplo. Parece que já há um projeto neste sentido que agora deve ser revisado.
Acredito que todos poderiam participar desse processo, através de um concurso público por exemplo, para escolher as melhores ideias para o projeto. As pessoas querem participar, especialmente aquelas que trabalhavam e estudavam no museu. Também é nossa intenção fazer uma mesa redonda em Juiz de Fora sobre o assunto e pensar nas soluções para os demais patrimônios que necessitam de cuidado. Isso é o que falta: cuidar mais e abrir para outras pessoas nos ajudarem a cuidar desses espaços. O Museu Nacional já se organizou e está aceitando voluntários e doações de acervos e recursos”.
O mercado tem um número suficiente de profissionais especializados para solucionar esses problemas?
“Faltam profissionais qualificados no mercado. Algo que acontece muito, inclusive no Rio, é que muitos vão para a Bahia fazer o curso no CECRE, que é um dos melhores do país. Mas é muito longe e se deslocar no Brasil é muito difícil. Também temos que considerar que existem poucas especializações na área, apesar de também termos hoje os mestrados profissionais, por isso a ideia de criar a pós-graduação na região e incluir esses detalhes que o arquiteto precisa conhecer e adaptar, como a questão patrimonial e de legislações.
Precisamos trocar mais informações e é importante o arquiteto pensar na multidisciplinaridade, que é algo que vamos destacar no curso. Precisamos trabalhar com arqueólogos, historiadores, museólogos e outros técnicos e com a própria comunidade, entender como o público irá utilizar o museu e fazer as adequações corretas”.
1 comentário em “Incêndio no Museu Nacional: fundador do CICOP Brasil aponta possíveis soluções”
Uma tristeza! Mas que aprendamos com nossos erros.