Exercício físico na UTI

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Exercício físico feito por pacientes na UTI tem resultados surpreendentes, até mesmo no caso de atividades passivas

 

Olá, meus amigos.

Como estão?

 

Espero que estejam gostando de acompanhar os posts no Blog do IESPE. Para mim, tem sido muito gratificante #compartilharoconhecimento que acumulei nesses mais de dez anos de estudos em diversas áreas, mas que sempre se somaram para me ajudar na prescrição de exercício focado em grupos especiais e, acima de tudo, na busca incessante de conteúdo atual e tecnológico para transmitir aos meus alunos nas salas de aula.

 

Desde o início da faculdade de Educação Física na UFJF, fiquei fascinado pelo estudo do corpo humano, tanto pela anatomia, que nos faz conhecer cada parte dele, quanto, em sequência, pela fisiologia, que nos mostra o funcionamento de tudo. Mas o mais surpreendente foi ver que a fisiologia do exercício explica e desvenda a interferência e as adaptações crônicas e agudas causadas diretamente pelo exercício físico em todos os sistemas do nosso corpo e em todos os níveis.

 

Quando digo em todos os níveis, acredite, pois o exercício é capaz de modificar a fisiologia humana em níveis moleculares. Isso acontece na síntese protéica da célula muscular, por exemplo, que é controlada através do núcleo da célula responsável por controlar a homeostasia celular, como você pode conferir no meu post sobre “O músculo e suas estruturas“.

 

Confesso que a cada dia a Ciência do Exercício vem se tornando mais complexa, abrangente e aplicável em ambientes de trabalho que nem imaginávamos há dez anos.

 

Há alguns anos eu nem sonhava com a possibilidade de trabalhar com doentes respiratórios em estado grave, como os com lesões no sistema nervoso central. por exemplo.. Mas fico feliz e cada dia mais interessado em melhorar minha formação, buscando conhecimentos que me permitam trabalhar de forma consciente e efetiva com populações que muitos de nós temem trabalhar, pelo simples fato de não termos tido contato com um aprendizado que permitisse que esse novo mundo de oportunidades chegasse até cada um de nós.

 

Nos últimos anos, percebi que o conhecimento que adquiri sobre  neuroplasticidade pode e deve ser aplicado a toda e qualquer população que estivermos trabalhando, seja um atleta de alto rendimento, um cadeirante ou um paciente grave em uma UTI.

 

UTI? Sim, você não leu errado.

Deve estar se perguntando por que, como e de onde tirei a possibilidade de trabalharmos numa UTI com pacientes graves.

 

Pois bem, vem comigo que esta semana vamos conversar sobre quais as aplicabilidades do exercício físico na manutenção e na recuperação da saúde de um paciente grave.

 

 

O que é de fato uma UTI?

 

exercício-na-UTI
(Foto: Reprodução/theconversation.com)

 Bem, de acordo com a AMIB (Associação de Medicina Intensiva Brasileira), a Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) ou Unidade de Cuidados Intensivos (UCI) é uma estrutura hospitalar que se caracteriza como uma ” unidade destinada à internação de pacientes graves, que requerem atenção profissional especializada contínua, materiais específicos e tecnologias necessárias ao diagnóstico, monitorização e terapia”. O profissional que se dedica a essa modalidade de atendimento chama-se intensivista.

 

Em 1854, durante a Guerra da Crimeia, foram idealizados os primeiros conceitos de Unidade de Tratamento Intensivo por Florence Nightingale, enfermeiraitaliana erradicada na Inglaterra.

 

Antes de ela iniciar esses conceitos, a taxa de mortalidade dos soldados feridos era de 40% e, pouco tempo depois, esse número caiu para apenas 2%. Esses resultados foram alcançados por conta de algumas medidas, como a separação de homens e mulheres, adultos e crianças, graves de não graves, e, principalmente, o estabelecimento de uma vigilância contínua, ou seja, 24 horas por dia.

 

A primeira UTI (ICU – Intensive Care Unit) surgiu em Boston (EUA), concretizada pelo médico cirurgião Walter Dandy em 1927. Hoje existem cerca de 8000 UTIs nos Estados Unidos e estima-se que no Brasil existam aproximadamente 3500 unidades. Meu colega, enfermeiro Marcos Schlinz, já escreveu sobre O que é uma “Unidade de Terapia Intensiva“.

 

Exercício físico e UTI

 

No final dos anos 2000, a literatura científica intensificou as publicações de diversos estudos feitos com pacientes graves internados na UTI e que tiveram acesso o mais rápido possível a programas de exercícios físicos, com resultados  surpreendentes.

 

Os pesquisadores utilizaram diversas formas de exercitar os pacientes, desde atividades involuntárias, através de eletroestimulação, cicloergômetros motorizados para membros inferiores e superiores, até, sempre que possível, exercícios voluntários, ou seja, que o paciente executa por si só. Essas práticas ativas podem variar desde uma pequena caminhada a exercícios contra resistência com pesos, elásticos, peso de segmento corporal, entre muitos outros.

 

Foi observado que os exercícios aumentaram a velocidade de recuperação funcional, a autonomia, a força muscular e, principalmente, a velocidade de recuperação dos pacientes, que passaram a sair mais rápido e melhor do período de internação na UTI.

 

Exercício passivo pode melhorar o paciente?

 

Sim, é isso mesmo. Exercícios feitos de forma completamente assistida, como, por exemplo, a eletroestimulação, demonstraram causar adaptações bem interessantes até mesmo em pacientes que sofreram lesão grave do sistema nervoso central. E o que é mais interessante: essas adaptações não param somente no membro que é estimulado. Cientistas comprovaram que existem adaptações a níveis corticais em pacientes que receberam eletroestimulação e fizeram exercícios totalmente assistidos.

 

Se exercícios passivos apresentaram resultados muito bons, os exercícios ativos foram verdadeiramente surpreendentes, causando adaptações neurais, cardiopulmonares e periféricas.

 

Como podemos explicar esses resultados?

 

Para fundamentar e explicar a utilização dos exercícios em pacientes de UTI como parte importante do processo de recuperação, precisamos conversar, primeiramente, sobre neuroplasticidade, que nada mais é que as adaptações que o SNC (Sistema Nervoso Central)  sofre quando iniciamos um programa de exercício físico.

Exercício na UTI
(Foto: Reprodução/mlive.com)

Vale a pena falar que essas adaptações são as mesmas ou quase iguais às de indivíduos sem nenhuma lesão ou doença. Sendo assim, é preciso estudar e entender os mecanismos de adaptação ao exercício e, a partir daí, aplicá-los ao paciente crítico.

 

Podemos dividir essas provas das adaptações em três momentos: provas “indiretas”, provas “diretas” e os mecanismos explicativos específicos das adaptações nervosas.

 

Provas indiretas:

  • Adaptações no início do treinamento de força
  • Especificidade das adaptações pós-treinamento
  • Efeito Cruzado do treinamento
  • Treinamento por imagem mental
  • Déficit da força unilateral

 

Provas diretas:

  • Aumento da ativação dos músculos agonistas
  • Aumento da sincronização das unidades motoras
  • Melhoria da coordenação intermuscular

 

Mecanismo explicativo específico das adaptações nervosas

  • Adaptações corticais
  • Adaptações espinhais (os reflexos espinhais) e supraespinhais (o comando nervoso central).

 

Sei que é um assunto muito vasto, com vários mecanismos que parecem ser complicados, então vou eleger uma prova indireta, uma prova direta e os mecanismos explicativos dessas adaptações para embasar e demonstrar como e porque devemos usar o exercício para tratar pacientes em UTIs.

 

 

Prova indireta – Efeito cruzado do treinamento

 

O estudioso Norihiro Shima e sua equipe publicaram um artigo muito interessante para demonstrar o que acontece em relação às adaptações ao exercício unilateral, ou seja, quando exercitamos apenas um lado do corpo, como, por exemplo, somente um braço.

 

A proposta desse grupo de pesquisadores era saber se ao treinarmos um membro, ganharíamos adaptações no membro contralateral que não foi utilizado no treino. A amostragem foi composta por nove indivíduos  no grupo de teste e seis  no grupo controle. O protocolo durou seis semanas com quatro sessões de treino por semana, totalizando 24 sessões de treino. Os exercícios utilizados durante o protocolo foram: flexão plantar (panturrilha) e leg-press realizados na mesma ordem com três séries de dez a 12 repetições, com repouso de entre um e dois minutos.

 

Os resultados desse estudo foram surpreendentes, pois o membro inferior que não foi utilizado durante o treinamento também apresentou melhoras significativas nas adaptações para a ativação voluntária e, consequentemente, na condução do estímulo nervoso que chega no membro para dar o comando da contração. O resultado mais importante foi o aumento da força máxima concêntrica, ou seja, a produção máxima de força pelo membro.

 

Aumento de força no membro não treinado? Sim… Não é surpreendente?!

E aí, o que isso muda na minha vida? Qual a aplicabilidade de saber que há adaptações pós-treinamento até no membro não utilizado no treino?

 

Antes de responder essas questões, precisamos discutir algumas coisas que acontecem quando temos a formação do comando de contração no cérebro e como ele é conduzido aos músculos para executar as contrações e mover a carga desejada.

 

Os resultados apresentados pelo grupo de Norihiro mostraram que houve adaptação no membro não treinado, mas esses resultados ficaram bem inferiores aos do membro que foi exercitado. A explicação para esse acontecimento é bem simples: nada provoca mais adaptação que o próprio exercício, obviamente. Mais movimento e mais carga está  diretamente relacionado a mais adaptações.

 

Ao olhar os resultados dessas adaptações, não foi observada nenhuma mudança na hipertrofia da musculatura. Para haver hipertrofia, é preciso ter estímulos causados pelos exercícios, tanto pela carga e estresse mecânico, quanto pelo estresse metabólico. E, como o membro que não foi treinado não recebeu nenhum desses estímulos, não houve mudança na secção transversa do músculo.

 

Mas por que temos adaptações nervosas no membro contra lateral?

 

Ao dar o comando de contração muscular, o sinal desce do sistema nervoso central para os dois lados do corpo, ou seja, para os dois membros (o treinado e o não treinado) como podemos ver no esquema da figura abaixo. Porém, o lado que não está ativo na execução do exercício vai inibir os movimentos.

 

 

exercicio-fisico-na-uti
(Foto: Reprodução adaptada/ Essential Anatomy 5 by 3D 4 Medica)

 

O processo de inibição de movimento é tão ou mais complexo que o processo de execução do movimento. A organização do sistema é muito importante para permitir que o aprendizado e execução dos exercícios aconteçam sem movimentos indesejáveis.

 

Sabendo dessas informações, eu pergunto: é certo deixar apenas na cama o paciente politraumatizado, que concentra suas lesões em somente um membro ou lado do corpo? Tudo isso sem nenhum exercício que aceleraria o processo de recuperação ou a desaceleração dos processos de perda causadas pela imobilização? Sinceramente, se você entendeu o mecanismo, penso que sua resposta será “não”!

 

Prova direta – Aumento da ativação dos músculos agonistas

 

Ao iniciarmos um programa de exercício, observamos logo nos primeiros treinos um aumento da força, porém, a hipertrofia não apresenta resultados significativos.

Por que isso acontece?

 

Temos dois agentes principais que contribuem para o aumento da força produzida pelo treinamento contra resistência: ativação neural e hipertrofia.

A ativação neural é responsável por ativar a musculatura responsável pelo exercício, mas assim como podemos observar no treino unilateral, em que o sinal chega nos dois membros, , o exercício gera uma resposta da musculatura agonista (i. e. principal no movimento) e na antagonista (i. e. que se opõe ao movimento do agonista), mesmo trabalhando de forma unilateral.

 

Ao mesmo tempo em que observamos uma melhora da ativação agonista, podemos evidenciar uma diminuição da ativação do antagonista, resultando em uma melhor coordenação intermuscular. Essas adaptações podem ser observadas quando trabalhamos com cargas baixas e cargas alta.

 

Se trouxermos esses resultados para um paciente num leito de UTI, podemos utilizar o trabalho muscular inicial indireto para estimular uma região que esteja lesionada, ou seja, incapacitada de realizar exercícios. Essa atividade ativa a musculatura antagonista  danificada, o que permite  a realização de um trabalho indireto, mas que provoca ativação e adaptações.

 

Sobre a hipertrofia, vamos conversar em um outro momento, no post específico sobre adaptações ao treinamento contra resistência… então fique ligado no Blog do IESPE para não perder.

 

Mecanismo explicativo específico das adaptações nervosas Adaptações corticais

 

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(Foto: Reprodução/www.thebrainworld.com)

 

A plasticidade do sistema nervoso central é tamanha que, mesmo exercícios por imagem mental (i. e. Sem execução, apenas com imaginação do movimento), são capazes de provocar adaptações no nível cortical. Claro que não tanto quanto no próprio exercício executado, como vimos na prova indireta.

 

Ao iniciar o treinamento, a área cortical responsável por aprender, planejar e executar o movimento passa a trabalhar de forma mais intensa, além de recrutar um número maior de neurônios para controlar todos os parâmetros do exercício, garantindo assim uma reorganização local e específica para aquela tarefa exigida durante o treinamento.

 

Esses resultados foram possíveis a partir de estudos usando a ressonância magnética funcional para fazer a leitura durante a execução de movimentos ou somente com a imaginação do movimento.

 

Essas mudanças no padrão de funcionamento dos neurônios são uma prova de que, mesmo que o indivíduo não consiga se mexer no leito da UTI, estando consciente, podemos desenvolver um trabalho para estimular as áreas corticais para manter o funcionamento do sistema. Também pode ser uma maneira de desacelerar as perdas promovidas pela inatividade, pois da mesma forma que a área cortical se expande e melhora seu funcionamento com o estímulos dos exercícios, ela retrai e diminui a eficiência quando não estimula, como, por exemplo, quando o paciente apresenta impossibilidade total de treinar. Nesse caso, observamos uma atrofia da musculatura, que é acompanhada por uma diminuição da capacidade de transmissão dos sinais pelo sistema nervoso periférico e, por fim, uma atrofia e redução da ativação cortical.

 

Conclusão

 

Utilizar o exercício como uma das estratégias para tratar o paciente crítico pode aumentar a velocidade e a qualidade da recuperação do paciente e é fundamental entender que, além disso, os processos de deterioração das funções motoras, cognitivas e de outros sistemas, não reduzem tanto durante um possível período de internação numa UTI.

 

Esse conhecimento é amplamente difundido em alguns países, e podemos observar que existem hospitais que já o implantaram no Brasil como, por exemplo, o Hospital Sírio-Libanês e o Hospital Israelita Albert Einstein, e estão obtendo ótimos resultados.

 

Gostou? Então compartilhe esse conhecimento com seus amigos.

 

Se tiver qualquer dúvida ou sugestão para melhorar esse post ou quiser propor algum assunto para um novo texto, deixe seu recado aqui embaixo.

 

Ainda há muito para estudarmos e aprendermos sobre a aplicabilidade do exercício como forma terapêutica em diversos momentos do tratamento de doenças e lesões.

 

O mercado está aberto! E aí, você é capaz e gostaria de trabalhar com esse tipo de grupo?

 

 

 

 

Saiba mais:

BURTIN C, CLERCKX B, ROBBEETS C, FERDINANDE P, LANGER D, TROOSTERS T. Early exercise in critically ill patients enhances short-term functional recovery. Crit Care Med 2009 Vol. 37, No. 9
SHIMA, ISHIDAK, KATAYAMAK, MOROTOME Y, SATOY, MIYAMURAM. Cross education of muscular strength during unilateral resistance training and detrainingEurJApplPhysiol(2002)86:287–294 – DOI 10.1007/s00421-001-0559-z
FOLLAND J P, WILLIAMS A G.The Adaptations to Strength Training Morphological and Neurological Contributions to Increased Strength. Sports Med 2007; 37 (2): 145-168

 

 

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Raphael Soares

Graduação em Educação Física (UFJF). Pós-Graduado em Fisiologia do Exercício e Grupos Especiais pelo Centro Universitário Estácio de Sá. Mestrado em Master of Science (MSc) in Human Movement and Sports Sciences, Universidade de Lausanne (Suíça).

3 comentários em “Exercício físico na UTI”

  1. Excelentes considerações Prof e Parceiro Raphael Soares; observo a cada dia em meus estudos e experiências/vivência profissional em Terapia Intensiva, que a cada dia faz-se necessária a mobilização precoce e os resultados são surpreendentes!!! Educadores Físicos e Fisioterapeutas são imprescindíveis para esse processo de Reabilitação… estamos vivendo isso em nossa família e, observamos os grandes avanços e conquistas a cada dia!!! Parabéns pela abordagem, super pertinente!!! Parabéns!!!

Os comentários estão encerrado.

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